terça-feira, 2 de maio de 2017

Ciclo romaria: Campinas a Aparecida

Ciclo romaria de Campinas/SP até Aparecida/SP

Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida

Desde jovem eu via na TV as pessoas fazendo viagens a pé e de bicicleta até o Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida e ficava intrigado: como é que essas pessoas arrumam tanta força, resistência e determinação? Uma dessas romarias que me marcou foi a que o Renato Aragão fez. Na ocasião ele percorreu a rodovia Presidente Dutra, saindo de São Paulo/SP, fazendo o trajeto de pouco mais de 200 km a pé, cercado de fãs e peregrinos. Isso para mim sempre foi algo fantástico, inimaginável, verdadeira prova de superação e de fé.
Renato Aragão em romaria para Aparecida em outubro de 1999

Essa ideia ficou como uma semente na minha cabeça e eu sempre imaginava que algum dia eu iria fazer o trajeto da minha cidade até Aparecida, mas isso teria que ser quando eu estivesse num momento espiritual perfeito, além de preparo físico em dia. Foi então que as duas condições pareceram se conciliar no final de 2015, quando eu estava fazendo os meus planos para o ano seguinte. Sabia que aquela sonhada viagem deveria acontecer e que ela seria iminente, ou seja, logo!

Por força disso, passei a me dedicar mais aos pedais longos. Fui gradativamente aumentando as distâncias para 60, 80 e até 100 km, sempre utilizando a minha velha Caloi. Contudo, logo percebi que ela não tinha muita vocação para giros longos no asfalto. Apesar dos pneus slic de 1.5, ela era pesada, fazia barulhos loucos e tinha uma ergonomia esquisita. Assim, aliado ao fato de querer me aventurar nas provas do Audax e tentar fazer a série completa em 2016, o que significaria completar os 200, 300, 400 e 600 km dentro do mesmo ano-calendário para conseguir o título de Super Randoneur, resolvi tirar o escorpião do bolso e comprar uma bicicleta própria para estrada, conhecida como road bike ou speed.

Fiz um bike fit virtual e comecei a fuçar no OLX, já que uma bicicleta dessas nova de entrada estava com preços impeditivos para mim. Depois de muita busca achei o que eu precisava e então comprei a minha Scott Speedster S1, numa oferta excepcional.
Minha nova speed

Com a nova máquina, fiquei ainda mais motivado nos treinos. Os pedais ficaram mais frequentes e eu até levei ela comigo em outra das minhas viagens a trabalho para Florianópolis/SC. Fiz vários passeios pela ilha, às vezes sozinho e outras vezes acompanhado de amigos. Conheci cada canto daquela fabulosa cidade, quase sempre em giros de 3 a 5h. Para não dizer que era tudo mil maravilhas, logo aprendi que aquele pneuzinho fino cobrava um preço caro para me levar mais rápido: os malditos furos eram frequentes. Até descobrir sobre a valiosa combinação de pneu novo + fita anti-furo + câmara com selante, eu acabei ficando expert em trocas táticas de câmaras furadas! Encarei isso como uma iniciação no mundo das road bikes.

Nesse ínterim a Semana Santa se aproximava e com ela o desejo de fazer a sonhada viagem para Aparecida veio como nunca antes eu tinha sentido. Era algo que brotava da alma e que eu não tinha mais como postergar. Me reuni com a da minha esposa e decidimos a data: a minha romaria pessoal iria acontecer no dia 23 de março de 2016. Passei para a etapa de planejamento logístico, fruto do aprendizado no Desafio de 100 km do Audax (se você não leu o relato, clique aqui). 

Parâmetros da viagem

Primeiramente, a decisão mais sensível foi estabelecer se eu faria o trajeto direto ou se eu o dividiria em duas etapas, com pernoite em algum hotel no meio do caminho. Abrindo o jogo, eu tinha sérias dúvidas se conseguiria chegar se resolvesse ir direto e por isso, em princípio, eu queria segmentar o roteiro. Contudo, compromissos pessoais, a perspectiva de gastos maiores e a própria provação da viagem, porque não, me fizeram mudar de ideia e firmar convicção de que teria que ser tudo de uma vez só.

Decisão tomada, hora de decidir em "como ir". Por óbvio eu pegaria a minha nova Scott, adaptaria os acessórios para uma pedalada maior e assim eu chegaria até mais rápido. Mas não... Tinham dois problemas nisso tudo. Primeiro que a speed estaria em Florianópolis e trazê-la para Campinas seria bastante trabalhoso. Segundo, que por mais que eu tivesse treinado com ela nos últimos 30 dias, o seu banco aerodinâmico ainda me causava arrepios! Sim, meus "fundos" estavam traumatizados com a T-Type devido ao Desafio dos 100 km e o selim fininho da minha nova bicicleta ainda me causava muito desconforto quando eu ficava mais de 3h sobre ele. Olhei então para o confortável banco da Caloi, deliciosamente recheado de gel e firmei convicção: é com a velha mountain bike aro 26 de 21 marchas que eu vou cumprir a minha romaria!
A bike escolhida

Pronto! Com as duas decisões mais difíceis tomadas, o restante seria mais fácil. Calculei o tempo da mesma forma que o Audax e estimei que a minha média horária geral deveria ser de 15 km/h, nem mais nem menos. Com base nisso, programei o roteiro e os locais das paradas para alimentação e reposição de água, basicamente a cada 30 km ou 2h, sempre em postos de combustíveis com boa estrutura, o que não seria difícil na Dom Pedro I e na Dutra. Aliás, decidi ir integralmente pela Dutra, rodovia que eu conheço muito bem e onde eu me sentiria mais confortável e seguro, apesar do fluxo intenso de caminhões. Comprei géis de carboidrato para suplementação a cada 40 min e barras de proteína para ingestão a cada 2h. A reposição de sais e eletrolíticos seria nas paradas programadas com isotônicos e lanches salgados. 

Sobre os cuidados e preparativos com a bike, mandei a MTB para uma revisão completa. Coloquei fita anti-furo nos pneus e pedi ao mecânico que o óleo da transmissão fosse do tipo mais resistente a água, já que havia alguma pequena chance de chuva no caminho. Comprei também 3 câmaras reservas novas, pois não queria imprevistos nesse setor. Coloquei duas lanternas para iluminar bem o meu caminho e outras 2 luzes vermelhas na retaguarda para ser bem visto. Além disso, eu usaria também o colete refletivo em X que havia comprado para o Audax. 

A viagem

Saí de casa às 4h da manhã daquela quinta-feira santa de 2016. Lembro bem que o céu estava escuro mas na minha mente uma coisa era bem clara: se dependesse apenas das minhas próprias forças eu não iria conseguir chegar ao destino final. Por isso mesmo, naquele início do pedal eu rezei muito pedindo ajuda e proteção, afinal seria uma viagem difícil, onde apenas Ele estaria me acompanhando e me ajudando.

Iniciei então com tranquilidade e girando leve. Não queria qualquer desgaste do tipo que tive em Florianópolis nos 100 km. Assim, peguei a SP-340 Campinas-Mogi, num curto trecho até a SP-065 Dom Pedro I. O clima era ótimo, a sensação era de estar beirando os 16º C e sem vento. Debaixo da camisa Jersey coloquei uma dry-fit de manga longa, apenas para esquentar o necessário. O plano era que essa blusa servisse também para proteção contra os raios UV que deveriam me castigar dali algumas horas. 

Em pouco tempo o sol já estava nascendo. Era a minha segunda vez vendo isso acontecer montado numa bike. Que coisa linda de admirar! E naquele momento eu estava no alto de uma grande subida na divisa de Campinas com Joaquim Egídeo me sentindo ótimo. Aliás, tudo nessa viagem estava planejado para que eu me desgastasse o mínimo, até o ritmo. Nas subidas eu colocava a menor coroa e a maior relação da catraca para não forçar nada as pernas. Nas descidas eu aliviava o banco e não fazia questão alguma de colocar força nos pedais para ir mais rápido - era momento de relaxar.

E assim os quilômetros da Dom Pedro foram sendo vencidos um a um, subida a subida e descida a descida. Aliás, descobri que aquilo não era uma rodovia e sim um tobogã. Certeza que os projetistas ganharam a mais para fazer tanta subida e descida naquela pista! As planícies quase não existiam, mas foi graças a isso que hoje, depois dessa experiência, passei a não ter mais o antigo medo das subidas. Descobri que elas não são intransponíveis, pois elas passam. Quando eu ficava em dúvida, simplesmente não olhava mais para cima, focava no giro redondo, alternava o tipo de força nos pedais, pedalava em pé, trocava a pegada do guidão, fazia zique-zague no acostamento, enfim, tudo valia a pena e uma hora eu chegava no topo da cota. E o melhor de tudo é que após uma longa subida sempre vem uma descida.

Já sobre a alimentação eu cuidei de tomar rigorosamente os géis de carboidrato nas horas determinadas, bem como as barras de proteína para não correr o risco de catabolizar. Comia misto-quente ou pão de queijo em quase todas as lanchonetes e tomava Gatorade e afins. Isso tudo me garantiu as energias e nada de cãibras em todo o trajeto. Eu aproveitava as paradas para reaplicar protetor solar, principalmente na nuca e nas coxas, locais que ficaram um pouco vermelhos mesmo com o cuidado que eu tive. Imaginem se eu não tivesse feito isso... Aliás se teve um vilão durante o percurso na Dom Pedro, foi o sol escaldante. Me lembro que após 6 horas de viagem ele estava forte na minha cabeça, com um calor imagino que de uns 36ºC. Inclusive foi especialmente desgastante o trecho entre as represas de Atibainha e Igaratá, onde o posto previsto para minha parada estava fechado. Sequei a caramanhola e a sede apertou. O que me salvou foi uma espécie de venda que tinha numa casa rural em frente uma escolinha daquelas bem pequenas. Esse foi um dos milagres que eu acredito ter acontecido comigo durante a viagem, já que nada indicava que ali seria uma venda. Parei de curioso e lá eu comprei duas garrafas de 1,5L de água e dois picolés. Foi o suficiente até chegar no próximo restaurante.

Após 9h 30min de pedal e cerca de 140 km percorridos,eu chegava à BR-116, rodovia Presidente Dutra, com o seu intenso volume de veículos. Parei logo no Frango Assado de Jacareí, e fiz uma longa pausa para o almoço. Diferente das demais pausas táticas, onde levei de 15 a 20 minutos, ali eu planejei ficar pelo menos 1 hora e meia para descansar e comer tranquilamente. Decisão acertada pois o sol havia judiado demais, as pernas estavam bem fadigadas e eu precisava daquela energia que somente uma boa refeição daria. Comi bem e deitei no chão para descansar, prendendo devidamente a bicicleta com a corrente num gradil perto de mim. Lembro que fiquei mais de meia hora com os pés para cima pensando do restante do trajeto.
 
Reposição calórica no Frango Assado de Jacareí/SP

Pausa para descanso na hora do almoço

Perto da hora de partir, ouvi um um trovão. Sim, de uma hora para outra o tempo havia mudado e o céu azul deu lugar ao cinza escuro. Começou a chuviscar e resolvi partir logo na esperança de sair debaixo das nuvens carregadas. Porém aquela simples garoa se transformou numa forte tempestade e em menos de 20 minutos os pingos já caiam grossos e bem doloridos. Quando eu passava por São Jose dos Campos, optei por ficar nas vias laterais para evitar os caminhões, mas em alguns trechos a água era tanta que batia na metade das minhas rodas. "Não tem problema", pensei, "chuva é bênção dos céus"! De fato, mesmo molhado eu me sentia melhor assim do que castigado pelo sol. 

Por sinal, o trecho de São José dos Campos foi decididamente o pior para mim, mas não porque da chuva e sim porque do volume de automóveis. Mesmo parecendo uma árvore de Natal iluminada, eu estava com medo dos veículos grandes que passavam muito perto de mim em altas velocidades. Como conduta preventiva eu trafegava pelo acostamento sempre beirando o seu limite direito, perto do mato ou das vielas, mas mesmo assim os sprays de água dos pneus me atingiam com violência constantemente. Sem falar que algumas pontes não tinham acostamento e nem calçada. Nessas eu desembarcava da bike e atravessava empurrando com o maior cuidado, muitas vezes me abrigando no alto das muretas de cimento. Em alguns aclives com 3ª faixa e sem acostamento, lembro que eu ia pelas valetas de águas pluviais, contra a correnteza mesmo. Estava mais seguro ali do que no bordo da pista.

Aproveitei que pelo menos a temperatura era mais amena e acelerei um pouco, pelo menos quando dava. Queria chegar logo em Eugênio de Melo para estar mais livre do grosso do movimento de caminhões e pedalar mais tranquilamente. Mas esse "acelerar" foi relativo porque na verdade a minha média horária estava piorando bastante. A diferença da velocidade com chuva era nítida e eu fazia o que podia para não extrapolar as minhas condições. A essa altura eu já tinha certeza de que iria chegar, só não sabia a que horas isso seria. E honestamente, saber quando eu iria entrar em Aparecida não era mais tão importante assim. Eu queria mesmo é concluir o pedal, mesmo que o tempo extrapolasse ao planejado. 

Continuei firme, bem como a chuva. Passei por Caçapava já de noite. Continuava parando a cada 2 horas aproximadamente. Descansava 20 a 30 minutos e seguia. Lembro muito bem que a minha última pausa foi em Pindamonhangaba, a cerca de 30 km de Aparecida. Ali os minutos parados para reabastecimento foram bem difíceis pois esfriou muito o meu corpo. Eu não tinha nada para me aquecer além da roupa que eu estava desde que saí de casa, sendo que eu não levei corta-vento ou capa de chuva. Quando saí do posto e voltei a tomar a chuva no peito e nas costas eu tremia tanto quanto uma velha Toyota Rural. Meu queixo batia involuntariamente, de verdade, e fiquei desesperado com o frio. Mais uma vez eu rezei pedindo ajuda... E enquanto eu rezava acelerei o ritmo até o quanto eu consegui. Parecia que era Papai do Céu me dizendo que essa era a última pernada e que eu não precisava mais me poupar. Deu certo o logo o meu corpo já estava aquecido. Mais uma hora e meia e eu cheguei em Aparecida. Essa última etapa foi bem rápida mesmo e não senti qualquer fadiga. Eu tinha 3 géis de carboidrato com cafeína que deixei para o final e creio que isso foi determinante para o gás extra. 

Enfim, pouco mais de 17 horas depois da minha partida de Campinas eu chegava no hotel San Diego Express em Aparecida. A minha esposa estava me esperando pois havia ido de ônibus para me encontrar. Ela me completa e é a minha segurança. Nós dois já enfrentamos muita coisa juntos e essa era apenas mais um dos nossos desafios, por isso mesmo ele teria que ser finalizado junto dela, que me recepcionou com lágrimas nos olhos. Eu imediatamente me ajoelhei, totalmente emocionado, e passei a agradecer ao Pai e à minha Mãe Maria pelas bênçãos que eu recebera todos os dias da minha vida. Nessa hora passa um filme pela nossa cabeça com os vários episódios de dificuldades e superação. Aquele momento na porta do quarto do hotel ficará para sempre guardado na minha mente, juntamente com a imagem da Basílica de Aparecida ao fundo.
Chegada ao hotel em Aparecida, com a Basílica ao fundo

Números

Tempo total: 17:24:29
Média horária total: 13,87 km/h
Tempo em movimento: 13:34:27
Média da velocidade (líquida): 17,80 km/h
Distância total: 241,5 km
Elevação acumulada: 4.301 m
Tempo em subidas: 06:01:02 (42% do tempo)
Calorias gastas: 12.294
Pneus furados: 0 (zero)

Link do Strava com o registro e o roteiro da viagem: https://www.strava.com/activities/525101903

Mapa do percurso. Clique para detalhes.

Conclusões
  • A escolha da bicicleta foi acertada à medida que a viagem teve mais a ver com a minha espiritualidade do que com desempenho.
  • A fita anti-furo é fundamental, especialmente em rodovias. Elas pareciam cactos do deserto quando desmontei as duas rodas. Tinha muito arame de pneu encravado nelas.
  • Um pedal desses não emagrece.Todas as calorias consumidas são repostas imediatamente nas paradas pois eu tinha uma fome absurda em todos os restaurantes e não queria correr o risco de ficar sem energia.
  • Planejar é preciso! O tempo gasto com os preparativos e estimativas é, na verdade, um investimento e aumenta demais as garantias de sucesso. Mas em 20 minutos tudo pode mudar!
  • Além da fé tornar possível superar montanhas, ela faz você chegar aonde jamais esteve.
EBENÉZER: "Até aqui nos ajudou o Senhor!" (Samuel 7:12)

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